quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Tempo, espaço, cidade.

Cada condomínio fechado tem um sonho: ser uma cidade (ou um bairro) diferente das cidades comuns, cheias de estrangeiros sinistros que se esgueiram nas ruas escuras, e brotam de lugares visivelmente perigosos. O loteamento fechado é como uma visão high tech do feudo, que abriga detrás de seus muros colossais, torres de vigia, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos perigos do mundo. “Uma cidade feita sob medida para indivíduos que querem administrar e monitorar seu estar junto (...), simultaneamente um claustro e uma fortaleza inacessível e bem guardada.” (BAUMAN, Zygmunt – “Modernidade Líquida”, Rio de Janeiro, Zahar, 2000)

O claustro concebido pelo traço do arquiteto é como a cidade da alegria e do divertimento compulsórios, onde a felicidade é o único mandamento, algo bem diferente do “esconderijo dos ascetas voltados para os céus, que se auto-imolam, são piedosos, oram e jejuam.” Já a fortaleza, conta com as mais avançadas tecnologias de vigilância, cercas elétricas de alta voltagem, muros altos, acessos vigiados por câmeras e guardas.

Aqueles que se dão ao luxo de comprar uma casa em um condomínio podem passar boa parte de suas vidas afastados dos riscos e perigos da turbulenta, hostil e assustadora selva que começa logo após o fim de seus muros. Tudo que uma vida agradável requer está lá. Lojas, igrejas, restaurantes, teatros, mata, playgrounds, pistas de corrida, quadras poliesportivas, e áreas livres suficientes para se acrescentar “o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro.” (idem)

George Hazeldon, arquiteto inglês radicado na África do Sul, é bastante explícito ao esclarecer as vantagens de seu Heritage Park, condomínio de luxo não muito longe da cidade do Cabo, sobre os lugares onde a maioria das pessoas vivem:

Hoje a primeira questão é a segurança. Queiramos ou não, é o que faz a diferença (...). Quando eu cresci, em Londres, tínhamos uma comunidade. Você não fazia nada errado porque todos conheciam e contariam pra seu pai ou mãe (...). Queremos recriar isso aqui, uma comunidade que não precisa se preocupar.[1] (BAUMAN)

Ao preço de uma casa em empreendimentos como o Heritage, você ganha acesso a uma comunidade. “Comunidade é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora, é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras de convívio. Pois a utopia da harmonia reduziu-se, realisticamente, ao tamanho da vizinhança mais próxima.” Justamente por isso que a “comunidade” é um bom argumento de venda.

No entanto, é preciso notar qual é o sentido dessa reunião comunitária. A comunidade da sua infância em Londres, a qual Hazeldon deseja recriar na África do Sul é apenas um território vigiado de perto pelos próprios vizinhos. “A diferença entre o passado afetuosamente lembrado e sua réplica atualizada é que o que a comunidade das memórias de infância de Hazeldon obtinha usando os olhos, língua e mãos, casualmente e sem muito pensar, no Heritage Park é confiado a câmeras de TV ocultas e dúzias de seguranças armados verificando senhas nos portões e discretamente (ou ostensivamente, se necessário) patrulhando as ruas.”(idem).

Essa fuga para a segurança dos muros não é novidade na história da humanidade, essa crença na conspiração dos outros contra nós atormentou certos homens em todos os tempos e lugares do mundo. O que é novo é que são os assaltantes (juntamente com os vagabundos e outros desocupados, personagens estranhos ao lugar em que se movem) que levam a culpa representando, o diabo, maus espíritos, ou mesmo os comunistas escondidos debaixo da cama. A figura do assaltante tornou-se o nome comum e popular para o “medo ambiente que assola os nossos contemporâneos”, assim sua presença se torna crível e o medo de ser assaltado é amplamente compartilhado. Sendo assim, quantias cada vez maiores do dinheiro público são gastas com o propósito de identificar e caçar os “assaltantes, vagabundos e outras versões atualizadas daquele terror moderno, o móbile vulgos – os tipos inferiores de pessoas em movimento, surgindo e se espalhando em lugares onde só deveriam estar as pessoas certas”. A defesa das ruas perigosas, assim como o exorcismo em casas mal-assombradas de outrora, passa a ser reconhecida como um objetivo digno de ser perseguido, sendo encarada como a maneira apropriada de proteger as pessoas contra os medos e perigos que as tornam cada vez mais sobressaltadas, nervosas, tímidas e assustadas.

O perigo mais tangível para aquilo que é definido como “cultura pública” está na “política do medo cotidiano”. “O espectro arrepiante e apavorante das ruas inseguras mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida pública.” (BAUMAN)

A fortificação da vida cotidiana, não é privilégio apenas dos mais ricos. Nas periferias, as principais vítimas do esvaziamento das funções do Estado, o crime organizado ocupa as brechas deixadas pelo poder público, fazendo o papel de vigilantes e de juízes, aqui os muros são invisíveis e as armas são mais pesadas. Os traficantes exercem seu poder tanto pela coerção quanto pela admiração que conquistam ao fazerem às vezes do Estado.

 “A comunidade definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a “defesa da comunidade” traduzida como o emprego de guardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves defensáveis com acesso seletivo; separação no lugar da vida em comum – essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana.

Richard Sennet define a cidade como “um assentamento humano em que estranhos têm chance de se encontrar[2]”. Significa que estranhos podem se encontrar em sua condição de estranhos, saindo desse encontro casual como estranhos, de modo que tudo termina de maneira tão abrupta quanto começou. Nada de retomadas, nem troca de informações sobre as atribulações do dia-a-dia, ou lembranças compartilhadas, nada que possa servir de guia para esse presente encontro. Um evento sem passado ou futuro, “uma oportunidade única a ser consumada enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar questões inacabadas para outra ocasião.” (2000).

A vida urbana requer um tipo de atividade muito especial e sofisticada, trata-se de um grupo de habilidades que Sennet denominou como “civilidade”:

a atividade que protege as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que possam estar juntas. Usar uma máscara é a essência da civilidade. As máscaras permitem a sociabilidade pura, distante das circunstâncias do poder, do mal-estar e dos sentimentos privados das pessoas que as usam. A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso.[3]

Tal objetivo é seguido na espera da reciprocidade. Proteger os outros contra a sobrecarga refreando o ato de interagir com eles, isso só faz sentido quando se espera generosidade semelhante. “A civilidade como linguagem, não pode ser “privada”. Antes de se tornar a arte individualmente aprendida e privadamente praticada, a civilidade deve ser uma característica da situação social. É o entorno urbano que deve ser “civil”, afim de que seus habitantes possam aprender as difíceis habilidades da civilidade”. (idem)

Dizer que o meio urbano é “civil” significa a disponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar como personae públicas – sem serem pressionadas ou induzidas a abrir mão de suas máscaras. “Mas também significa uma cidade que se apresenta a seus residentes como um bem comum que não pode ser reduzido ao agregado de propósitos individuais e como uma tarefa compartilhada que não pode ser exaurida por um grande número de iniciativas individuais, como uma forma de vida com um vocabulário e lógica próprios e com sua própria agenda, que é (e está fadada a continuar sendo) maior e mais completa que a lista de cuidados e desejos individuais – de tal forma que “vestir uma máscara pública” é um ato de engajamento e participação, e não um ato de descompromisso e retirada do “verdadeiro eu”, deixando de lado o intercurso e o envolvimento público, manifestando o desejo de estar só e continuar só.”(2000)

Nas cidades contemporâneas há muitos lugares que recebem o nome de “espaços públicos”. Possuem os mais variados tipos e tamanhos, mas a maior parte deles faz parte de uma de duas grandes categorias. “Cada categoria dessas se afasta do modelo de espaço civil em duas direções opostas que se complementam.

A Avenida Luiz Carlos Berrini, a menina dos olhos do mercado imobiliário com fins comerciais paulistana, incorpora todas as características da primeira das duas categorias de espaços públicos urbanos, que não são civis. O que chama a atenção é acima de tudo a falta de hospitalidade da via, tudo aquilo que se vê inspira respeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanência. Os edifícios que margeiam a via de fluxo intenso de veículos são feitos para serem admirados, e não visitados; cobertos de cima a baixo por vidro refletivo parecem não possuir portas ou janelas, dando as costas para a rua da qual se erguem. Os pedestres que ocupam as calçadas, ou estão indo para seus postos de trabalho em alguma das milhares de salas voltadas para este fim, ou estão nos pontos de ônibus a espera de sair dali.

“A segunda categoria de espaço público mas não civil se destina a servir aos consumidores, ou melhor, a transformar o habitante da cidade em consumidor”. Consumidores geralmente compartilham esses lugares (casas de shows, pontos turísticos, shopping centers), sem ter qualquer interação social real. Lugares que encorajam a ação e não a interação. Ao compartilhar o espaço físico com outros, o consumidor dá importância a ação, conseguindo a aprovação pelo número, “que corrobora seu sentido e a justifica sem necessidade de mais razões”. Qualquer interação os afastaria de suas ações, que requerem um envolvimento pessoal, trazendo prejuízo e não vantagens. Nada seria acrescentado aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente desta tarefa.

O consumo é um passatempo individual, constituído de sensações experimentadas apenas subjetivamente. As multidões que lotam esses templos de consumo são apenas ajuntamentos, não formam congregações, por mais cheios, tais lugares de consumo coletivo não têm nada de “coletivo”.

“Os encontros, inevitáveis em lugares lotados, interferem com o propósito” (BAUMAN), devem ser breves e superficiais. O lugar é protegido contra todo tipo de chatos, intrometidos, qualquer um que possa interferir no isolamento do consumidor. No templo do consumo é sempre primavera (BAUDRILLARD), graças aos sistemas de iluminação artificial e condicionamento do ar, uma ilha de ordem, livre das populações marginais (pelo menos se supõe isso), ninguém está lá pra conversar ou socializar. “Levam com elas qualquer companhia de que queiram gozar (ou tolerem), como os caracóis levam suas casas.” (BAUMAN)

Tudo aquilo que acontece dentro do templo do consumo tem pouca ou nenhuma relação com o ritmo e/ou o teor da vida diária que flui fora de seus portões, é como estar em outro lugar. Diferente dos carnavais, que também envolvem essa experiência de ser transportado: as idas às compras são principalmente viagens no espaço, e apenas secundariamente viagens no tempo (2000). No carnaval a cidade se transforma, pode ser entendido como um intervalo de tempo em que ela se transforma antes de cair novamente em sua rotina. Um lapso de tempo definido que, no entanto retorna de maneira cíclica, desvendando um outro lado da realidade diária, um lado ao alcance de todos, mas que normalmente permanece oculto e impossível de tocar. A lembrança dessa descoberta unida a esperança de outros relances por vir impedem que a consciência desse outro lado seja completamente suprimida.

“Uma ida ao templo de consumo é uma questão inteiramente diferente. Entrar nessa viagem, mais do que testemunhar a transubstanciação do mundo familiar, é como ser transportado a um outro mundo. O templo do consumo (claramente distinto da loja da esquina de outrora) pode estar na cidade (se não construído, simbolicamente, fora dos limites da cidade, à beira de uma auto-estrada), mas não faz parte dela; não é o mundo comum temporariamente transformado, mas um mundo ‘completamente outro’. O que o faz ‘outro’ não é a reversão, negação ou suspensão das regras que governam o cotidiano, como no caso do carnaval, mas a exibição do modo de ser que o cotidiano impede ou tenta em vão alcançar – e que poucas pessoas imaginam experimentar nos lugares que habitam normalmente.”(2000)

O carnaval nos mostra que a realidade não é tão dura quanto parece e que a cidade pode ser transformada, em contrapartida, os templos do consumo não revelam nada da natureza da realidade cotidiana. Assim como o “barco” de Foucault, “é um pedaço flutuante do espaço, um lugar sem lugar, que existe por si mesmo e ao mesmo tempo se dá ao infinito do mar[4]”; pode realizar esse “dar-se ao infinito” porque se afasta do porto doméstico e se mantém a distância. (BAUMAN) Esse “lugar sem lugar”, é um lugar purificado, limpo das diferenças, onde não há espaço para a alteridade.

Lévi-Strauss sugeriu em Tristes trópicos que apenas duas estratégias foram utilizadas pela humanidade quando a necessidade de enfrentar a alteridade surgiu: uma de natureza antropoêmica e a outra antropofágica. (2000)

“A primeira estratégia consiste em ‘vomitar’, cuspir os outros vistos como incurávelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o diálogo, a interação social e todas as variedades de comercium, comensalidade e connubium. As variantes extremas da estratégia ‘êmica’ são hoje, como sempre, o encarceramento, a deportação e o assassinato.” (BAUMAN) As formas modernizadas da estratégia “êmica” são a segregação espacial, os guetos urbanos, o acesso seletivo a espaços e o impedimento seletivo aos seus usos.

A segunda estratégia parte de uma suposta “desalienação” das substâncias alheias: “ingerir”, “devorar” corpos e espíritos estranhos à realidade dominante, fazendo isso pelo metabolismo, tornando as pessoas idênticas aos corpos que as ingerem, logo indistinguíveis deles. “Essa estratégia também assumiu uma ampla gama de formas: do canibalismo à assimilação forçada – cruzadas culturais, guerras declaradas contra costumes locais, contra calendários, cultos, dialetos e outros “preconceitos” e “superstições”. (idem) Enquanto a primeira estratégia visa o exílio, a aniquilação do “outro”, a segunda estratégia ataca em cheio a sua alteridade, buscando a sua suspensão, ou mesmo sua destruição.

Há uma impressionante dicotomia entre as estratégias de Lévi–Strauss e as duas categorias de “espaços públicos mas não civis”. A Berrini, que juntamente com outros espaços interditórios ocupam lugar de destaque entre as inovações urbanas correntes, é um exemplo arquitetônico da estratégia “êmica”, enquanto os espaços de consumo representam a “fágica”. Cada uma a sua maneira respondem ao desafio de enfrentar a chance de encontrar estranhos, característica esta constitutiva da vida urbana. Tal tarefa requer medidas assistidas pelo poder onde os hábitos de civilidade estão ausentes ou pouco desenvolvidos. Tais espaços derivam da ausência da civilidade, e lidam com as conseqüências prejudiciais dessa falta, não pela promoção ou pelo ensino dessa habilidade, mas tornando a sua posse irrelevante e desnecessária na prática atual do viver em cidades.

Além dessas duas respostas, há ainda uma terceira, cada vez mais comum. Trata-se daquilo que Georges Benko, seguindo Marc Augé, chama de “não-lugares”. Os “não-lugares” partilham de algumas características da primeira categoria dos espaços públicos mas não civis, na medida em que desencorajam o ato de estabelecer-se, tornando a real vivência do espaço praticamente impossível. Ao contrário da Berrini e dos prédios que a margeiam, os não-lugares “aceitam a inevitabilidade de uma adiada passagem, às vezes muito longa, de estranhos, e fazem o que podem para que essa presença seja meramente física e socialmente pouco diferente, e preferivelmente indistinguível da ausência, para cancelar, nivelar ou zerar, esvaziar as idiossincráticas subjetividades de seus passantes”. (BAUMAM) O truque consiste em tornar as diferenças existentes em cada habitante em algo completamente irrelevante durante a sua estadia. Quaisquer que sejam as diferenças, elas são enquadradas dentro dos padrões de conduta impostos pelos não-lugares, pouco importando as linguagens ou os costumes diários de seus ocupantes. Sendo assim, no seio dos não-lugares, todos devem se sentir como se estivessem em casa, mas ninguém deve comportar-se como se de fato o estivessem. Trata-se de um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história, os exemplos são os mais variados, e incluem aeroportos, terminais rodoviários, toda a rede de transporte coletivo, auto-estradas, avenidas de fundo de vale, universidades, etc. Jamais na história do mundo os não-lugares ocuparam tanto espaço, ou presenciaram tamanha expansão, tornando os espaços civis cada vez mais rarefeitos.

Como já vimos, as diferenças podem ser engolidas, vomitadas, apartadas, e “há lugares que se especializam cada vez mais em cada caso”. Porém as diferenças também podem ser tornadas invisíveis, melhor dizendo, impedidas de serem percebidas. É o caso dos espaços vazios. Os cunhadores do termo, Jerzy Kociatkiewicz e Monika Kostera, propõe que espaços vazios são

lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente por cercas ou barreiras. Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis porque invisíveis.[5]

Tais espaços, antes de qualquer coisa, são vazios de significado. Não que deixem de ter significado porque são vazios, o que ocorre é ao contrário, mais até que vazios, são invisíveis. Nesses lugares que resistem ao significado, as diferenças não são negociáveis, já que neles não existem quaisquer tipo de negociação. O modo como eles lidam com a diferença é radical numa maneira que outros tipos de lugares projetados para atenuar ou anular o impacto de estranhos não podem acompanhar.

Podemos dizer que eles são espaços que “sobram” depois da reestruturação de espaços ditos realmente importantes: sua presença fantasmagórica é conseqüência da falta de superposição entre as estruturas e a confusão do mundo (qualquer mundo, até aquele desenhado propositalmente), notórios por fugirem a classificações cabais. A família dos espaços vazios não se limita às sobras do projeto arquitetônico ou às margens negligenciadas pelo urbanista. “Muitos espaços vazios são, de fato, não apenas resíduos inevitáveis, mas ingredientes necessários de outro processo: o de mapear o espaço partilhado por muitos usuários diferentes.”(2000)

A cidade possui muitos habitantes, cada um com seu próprio mapa mental. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem em lugares distintos. “Os mapas que orientam os movimentos das várias categorias de habitantes não se superpõem, mas, para que qualquer mapa faça sentido, algumas áreas da cidade devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que o resto brilhe e se encha de significado.” (BAUMAN)

O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são lugares em que as pessoas não entram, onde se sentem perdidas e vulneráveis, surpreendidas e um tanto atemorizadas pela presença humana.

A modernidade pode ser definida como a história do tempo, ou melhor, a modernidade é o tempo em que o tempo possui uma história. Antes que físicos e filósofos começassem a definir o tempo e o espaço em termos científicos, provocando assim a sua separação. Tempo e espaço estavam intimamente ligados dentro da percepção cotidiana, sendo assim “longe” e “tarde” “cedo” ou “perto” significavam a mesma coisa, ou seja, o esforço necessário para que um ser humano percorresse uma certa distância, ou para se cumprir uma certa tarefa. Isso se devia ao fato de que as ferramentas empregadas pelos homens, estavam intimamente atreladas ao seu próprio corpo. Tornando as noções de tempo e espaço intimamente ligadas aos processos naturais. Na chamada era do wetware, humanos e animais faziam os esforços e impunham os limites. Assim, nobres poderiam viajar com mais conforto, não seriam capazes de vencer distâncias numa velocidade maior do que qualquer plebeu. Sem a necessidade de uma medida real do tempo, e por conseqüência, espaços menos controlados. Num período que pode ser definido como a pré-história do tempo.

O advento da modernidade marca a dissociação entre tempo e espaço. A invenção de máquinas capazes de acelerar a produção e o movimento tornou o tempo o elemento dinâmico da relação espaço-temporal. Essa capacidade ampliada de trabalho e deslocamento deu início ao período que Bauman denomina como modernidade pesada. Um período marcado pela dominação do espaço, que para atender as novas necessidades da produção deveria ser subordinado à técnica. A era dos Estados fortes, controladores e interventores, um capitalismo de produção, onde fábricas cada vez maiores eram o símbolo da sua força.

A modernidade pesada era, afinal, a época de moldar a realidade como na arquitetura ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser “construída” sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais que tudo projetada antes da construção. Era uma época de pranchetas e projetos – não tanto para mapear o território social como para erguer tal território até o nível de lucidez e lógica que só os mapas são capazes. Era uma época que pretendia impor razão a realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo o comportamento contrário à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma questão de vida ou morte. (BAUMAN)

O fim da Segunda Guerra Mundial é um marco para importantes mudanças dentro do sistema capitalista, mudanças que não diziam respeito apenas à nova ordem bi-polar, trata-se do domínio cada vez maior do homem sobre o tempo. A revolução tecnológica que desencadeou a chamada Terceira Revolução Industrial, mudou completamente os rumos da humanidade. Com o advento da Era da Informação e a ascensão do capital financeiro monopolista, o tempo chegaria a quase instantaneidade, uma vez que os dados são capazes de viajar na velocidade da luz, sendo assim, o deslocamento perde importância, o domínio do espaço deixa de ser essencial. O poder se transforma em uma entidade nômade e seus princípios estratégicos preferidos são a fuga, evitação e o descompromisso, sendo que sua condição ideal é a invisibilidade. Dando a modernidade seu novo caráter leve, ou nas palavras de Bauman, fluida.

Bauman sugere que uma maneira de se compreender essas fases da modernidade, seria através de seus medos. Orwell e Huxley eram visionários, nas distopias criadas em suas maiores obras (1984 e Admirável Mundo Novo), conseguiram captar os maiores temores dos homens de sua época. Tais temores residiam nessa potência totalitária própria da modernidade pesada, mundos de vigilância, de controle absoluto, da dissolução completa das liberdades individuais. Hoje os medos são outros, o Grande Irmão já não assusta mais ninguém, justamente porque o Estado já não canaliza mais tantas funções, nos tempos da modernidade líquida somente o indivíduo carrega o peso de suas angústias e necessidades, fato que os prendem cada vez mais ao solo, encontrando consolo na liberdade consentida de consumir. Nessa nova era de incertezas, onde as narrativas de um mundo melhor falharam, os maiores medos residem na defesa da propriedade, em gestos que demonstram um medo das ruas cada vez maior. As teletelas de Orwell não voltam mais seus olhos para as salas de estar, e sim para as ruas escuras e perigosas.

Entre os modelos de planejamento urbano que competem para assumir o trono deixado pelo projeto modernista está o chamado planejamento estratégico. Modelo este difundido no Brasil em ação combinada de agências como a Habitat e por consultores internacionais, catalães em sua maioria, possuindo como um dos expoentes máximos desse novo conceito de planejamento urbano a cidade de Barcelona.

Tal experiência tem origem nas técnicas de gestão empresarial, com a justificativa de que as cidades de um mundo globalizado passam pelos mesmos problemas e devem ser administradas com a mesma lógica de uma empresa. Ou seja, as cidades devem tornar-se competitivas com o intuito de atrair investimentos e passar para trás suas concorrentes.

A cidade se vende no sentido em que busca se adequar as necessidades do capital especulativo, criando toda uma infra-estrutura para esses consumidores em potencial enquanto a grande massa de excluídos é tratada como problema paisagístico em seus postulados. Transforma-se em empresa quando se apropria de técnicas de marketing e business com o intuito de atrair mais investimentos e enxugar gastos em setores “improdutivos” como saúde e educação, atuando apenas a favor do capital e por fim apropria-se da imagem de pátria quando se apóia na figura de lideranças carismáticas, matando a cidadania quando a contestação e o posicionamento são banidos da esfera administrativa municipal.

Enquanto a visão moderna de planejamento urbano possuía como alicerce o taylorismo e sua lógica tecnicista, funcionalista e racional, os novos “gestores da cidade”, se apóiam em doutrinas como o toyotismo criando uma maior alienação em relação ao espaço, as relações sociais urbanas deixam de ter importância, a premissa é tornar a cidade rentável a qualquer custo, função esta delegadas aos citadinos.

Nessa nova concepção de cidade, a polis (lugar de confrontos de idéias, berço do cidadão, onde ocorre a real interação humana com o espaço) perde terreno para a city (sede de grandes investimentos, lar dos citadinos, dóceis autômatos que sob a liderança de figuras carismáticas exercem suas funções pelo bem da city).

No entanto, algumas formas de resistência ainda sobrevivem, na medida em que os habitantes da cidade lutam pela cotidianização da política, gerando um processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos, norteando assim uma nova alternativa, que apesar de ainda não estar organizada não deixa de ser uma saída.

 



[1] Citado de Chris Mcgreal, “Fortress town to rise on Cape of low hopes”, Guardian, 22/01/1999.

[2] Richard Sennet, “The Fall of Public Man: On the Social Psychology of Capitalism”, Nova York: Vintage Books, 1978.

[3] Sennet, “The Fall of the Public Man.

[4] Michel Foucault, “Of Other Spaces”, Diacritics 1, 1986, p. 26

[5] In BAUMAN, Jerzy Kociatkiewicz e Monika Kostera, “The anthropology of empty space”, Qualitative Sociology 1, 1999

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